NUNO NUNES FERREIRA


23 JANEIRO 2015

01

FICHA TÉCNICA
circa diem
7 dossier
7 caixas arquivadoras 
1866 folhas impressas (projecto)
96 folhas impressas (bibliografia)
3 televisores
3 discos externos
7 mesas em ferro e mdf lacadas a preto

Dimensões variavel
2014/2015


 

Um paradoxo, por um dia

Na obra de Nuno Nunes Ferreira persiste uma prática arquivista que se desenvolve como um motor interno ao seu processo de trabalho. Se em muitas obras esse procedimento é imediatamente visível, noutras emerge como um segmento organizado e concatenado segundo outros parâmetros que a obra exige, sem ficar refém de prática arquivística mais canónica, que no seu caso em particular passa também por uma actividade respigadora que interpela a ideia de arquivo como um sistema que apenas se alimenta do registo seguinte. Se quisermos, podemos caracterizar esta actividade como nómada, no sentido em que a procura não é sempre predeterminada por um objectivo concreto, mas também não se resume à mera agregação e colecção de curiosidades.
Nunes Ferreira tem uma estreita relação com a história enquanto possibilidade de reorganização do conhecimento humano em áreas muito diversas, tais como a política, as narrativas populares, as histórias e as estórias que por vezes são narradas pelas imagens, entre outras que nos desafiam a memória, o conhecimento, ou os temores da guerra e da coerção autoritária subjacentes à relação política anteriormente mencionada.
Por outro lado, o artista revela uma forte determinação em alargar as suas pesquisas, construindo esquemas visuais em que aparentemente nos perdemos, sem contudo esquecermos que o tempo e a sua métrica vão definindo um olhar despudorado e muitas vezes transgressor que não se detém em abordar temas ou reactivar o significado de registos históricos que conhecemos, mas aos quais atribuímos o estatuto de objecto da memória, residente, e tantas vezes resistente, no amplo espaço mental que nomeamos vulgarmente como “o passado”.
É neste contexto que a obra “Circa Diem” foi pensada e trabalhada para o evento efémero que é o EMPTY CUBE. O trabalho é exposto em dois tipos de suporte, ocupando o espaço cúbico (e efémero) e a sala da galeria Appleton Square, que acolhe o projecto. O primeiro suporte é dinâmico; o segundo é de natureza inerte e só pode ser activado através do seu manuseamento. No primeiro caso, estamos perante um dispositivo digital que se faz representar como um relógio bibliográfico, uma espécie de marcação do tempo real através da menção das suas unidades de medida escritas e inscritas na diversidade de  documentos que nomeiam cada segundo, minuto, hora, e finalmente um ano, ao qual correspondem apenas duas páginas. O segundo suporte é materializado pelos documentos que deram origem à digitalização do primeiro e que nos confrontam com a dimensão física desse ano, dividido em pastas de arquivo organizadas cronologicamente à medida exacta de um segundo. Todo este processo tem como base um estudo que Nuno Nunes Ferreira fez sobre o conceito do ciclo circadiano (do latim circa diem, que significa cerca de um dia). O ritmo ou ciclo circadiano estrutura na espécie humana comportamentos que podem ser associados ao que denominamos como relógio biológico, integrado na estrutura central do nosso cérebro (mais exactamente no hipotálamo) e que age como um sistema regulador. Mas este fenómeno encontra correspondência nos animais, nas suas migrações, e no desenvolvimento das plantas no ciclo temporal sincronizado pela presença da luz solar e a sua ausência durante a noite. Metáfora da ordem natural, e por vezes contraditória, que se estabelece entre a vigília e o sono. Entre a presença do olhar e a sua resistência à falácia e o esgotamento do corpo que cede ao devir.
Nuno Nunes Ferreira aplica este modelo de forma exponencial, tendo constituído um arquivo bibliográfico onde vamos encontrar numa página de um horário de caminhos de ferro inglês a sinalização de um momento desse ano: “twelve P.M.”, ou ainda, na última página do arquivo em papel, as palavras “one second”. Esta será de facto a primeira página de um arco temporal com a amplitude cronológica de um ano, que é dissecado num movimento contínuo até ao último segundo desse ano e tem como referencial no tempo o dia exacto do projecto realizado no EMPTY CUBE: 23 de Janeiro de 2015. A métrica desta obra condensa a temporalidade justaposta a um palimpsesto textual que escreve o tempo que este projecto declara perante nós, aparentemente condensado mas paradoxalmente a decorrer em tempo real, ou consultável página a página, obrigando-nos a suportar o peso da matéria que cumprimos no tempo possível, mas também real, que a nossa corporalidade permite.

João Silvério
Janeiro 2015