Fragmento e memória.
Uma obra de Vasco Barata, parte de The Film Series1, constitui-se como um elemento indeterminado mas inultrapassável na estrutura interna dessa série. A singularidade e riqueza da imagem, que o autor perscruta no seu trabalho, cedem, neste caso em particular, perante a operatividade que o texto inscreve na obra e que passo a transcrever:
- What’s on your mind?
- Uhmm … the afterglow of having experienced something spontaneous and good.2
Este texto, extraído de um diálogo anónimo e ficcional, remete-nos para um universo translúcido, em que a memória de um momento, reflectida na pergunta, desvela uma ligação, aparentemente tíbia, a uma tessitura densa e contínua que o autor percorre sob uma forma camaleónica. Esta transmutação não é uma atitude autoral, ou seja, uma resposta activa do artista perante o seu objecto. É, antes de mais, um entendimento sagaz perante os sistemas que produzem e difundem a diferenciação e multiplicação de imagens que concorrem ao seu encontro. Se por um lado Vasco Barata percorre com voracidade a miríade de canais de informação que se encontram ao seu alcance, por outro atém-se perante esse fluxo, como se escutasse o seu ouvido interno, permitindo que uma sonoridade distinta evolua e se revele como uma reactualização. Importa referir o carácter serial da sua produção, e a centralidade que as micro-narrativas patentes em cada uma das suas obras detêm no âmbito de uma série, como se tratasse de uma sequência cinematográfica. A imagem exposta é uma fotografia que pertence a uma fase anterior do seu trabalho, e foi até este momento uma obra que restou fora de um sistema serial. Esta imagem apresenta-nos um jovem, talvez um desportista, tocado por pequenas centelhas de luz, metáfora de um semi-deus apolíneo, entre o desejo terreno da juventude eterna e a magia intemporal que lhe confere uma meta-realidade, numa revelação momentânea. A imagem que vemos ultrapassa a hipotética convicção que temos do registo fotográfico e da sua veracidade como representação e fixação da realidade. As centelhas podem ser reflexos projectados pelo vidro de uma janela, efeitos criados pelo autor, ou, numa primeira observação mais desatenta, pequenas manchas descoloradas. A realidade do mundo é, para o artista, uma evidência que ocorre no fluxo das imagens e na sua indexação interminável. O seu trabalho percorre silenciosamente a esteira lançada por P. de Bordieu, questionando a conformidade entre o meio utilizado para o registo, a sua função e a necessidade de confirmação do real. É deste ponto de vista que este projecto, AfterGlow, abre uma grelha de relações entre a linguagem, a performatividade e o estatuto da imagem. É nesta amplificação de relações que a figura do camaleão desenha o perfil conceptual do autor. Não se trata de remisturar o dado conhecido, seja este objecto de uma procura intensa ou um achado casual, mas de experimentar e articular conceptualmente os limites que a obra questiona e provoca no espaço expositivo. É neste aspecto que o autor é um mutante simultaneamente silencioso. Se a relação no espaço contém uma especificidade pela natureza deste, esta é afectada pela posição da imagem e a sua relação com o desenho executado livremente sobre a parede, conferindo-lhe uma performatividade que não se restringe apenas ao movimento necessário ao acto de desenhar, antes se evidencia pela estrutura do seu pensamento reflexivo, que questiona a natureza interna da sua produção como autor e uma despudorada capacidade de experimentação do espaço e do tempo da exposição. AfterGlow é uma aproximação à condição efémera que nos constitui, convocando a memória na relação directa com o fragmento, um instrumento absolutamente necessário para que esse momento único da nossa experiência reintegre a nossa vivência a posteriori.
João Silvério
Dezembro de 2008
1 Sobre esta série ver o texto de Bruno Marchand “Scouting for Recall”, Março de 2007, editado por ocasião da exposição do artista na galeria Reflexos – Arte Contemporânea no Porto.
2 Texto da obra The Film series (6), 2006; impressão por jacto de tinta sobre papel fotográfico; 45 x 60 cm.