DANIEL BARROCA
25 JUNHO 2008
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FICHA TÉCNICA
Lento, 2008

Texto impresso e dvd pal, p/b, loop, poema traduzido por Pedro Moura



A distensão do silêncio.

Como falar de um rosto que as mãos percorrem, ou de uma cabeça que se movimenta arrastando um corpo que se busca infinitamente? Que som trespassa essa figura esvaziando o espaço onde nos encontramos?
Não há respostas prováveis a estas perguntas, antes uma impossibilidade que Daniel Barroca enfrenta e simultaneamente nos coloca. "Lento/Slow" é uma obra que se inicia com um poema da sua autoria, que não tem título. Não é um poema "Sem título", é um fragmento extraído da convivência diária que o artista tem com o espaço e com os ecos, ou murmúrios, que esgotam o lugar que habita e os lugares que o rodeiam. Esta obra de Daniel Barroca foi realizada em Berlim, no seu atelier, situado nos estúdios da Künstlerhaus Bethanien, onde trabalha há cerca de um ano.
A sua experiência coloca-nos perante uma dúvida, como identificar os sons que nos chegam de fora e que se constroem como entidades autónomas, que nos cercam, recolocando-nos em presença de um mundo possível? É como reconhecer, em primeira instância, que a solidão desperta na consciência de cada um, de si mesmo, uma ligação tíbia aos estímulos que aparentemente se repetem e que automaticamente começamos a replicar para conseguir obter o outro ausente. Para que na espessura do silêncio possam eclodir vozes surdas, que ressoam entre si, constituindo-se como um labirinto que ocupa e distende o espaço onde nos encontramos. Que nos invade.
Numa primeira abordagem, mais reconhecível, este trabalho de Daniel Barroca revisita a figura humana, que não se restringe ao trabalho em vídeo. Ao invés, esta revisitação começa com um texto e assume uma dimensão universal quando lemos na segunda parte do poema:

para poderes dizer a ti próprio aquilo que és
aquilo que o mundo é.

O autor percorre um caminho que nos causa estranheza. Há uma linhagem beckettiana no sentido em que aquele a quem estas palavras são dirigidas é uma segunda pessoa. Um outro, para além de si mesmo, que se transforma num "tu" incondicional que pode ser qualquer um de nós impregnado pelo poder que a palavra escrita confere à construção do mundo e do pensamento. Mas há também um ressoar incómodo presente nos sons que nos rodeiam, como sinos a rebate, persistindo sobre a distância que nos afasta do mundo e sobre a vontade indómita de regressar a este. Estes sinos convocam uma obra cinematográfica, "Andrey Rublyov"(i), evocação sublime da criação artística como a única possibilidade de retorno, de regresso à interacção com o mundo e, desta forma, com a vida. Barroca expõem-nos perante uma situação-limite que nos prende à imagem surda de um rosto sem olhar, um resto de figura humana humedecida pela sonoridade pendular dos sinos ou de um eco que já perdeu o seu referente. Esta imagem apartada do que é reconhecível move-se lentamente, como se estivesse fora do tempo, revelando uma instabilidade incessante. Este retrato deceptivo, regressa infinitamente através dos intervalos negros, como uma luminescência sincopada que nos alerta para a transitoriedade da existência. O vídeo, a preto e branco, remete-nos para outras obras videográficas do autor, mas simultaneamente para a sua prática do desenho, que não se fixa na repetição, mas persiste em procurar uma resposta prosseguindo com uma regular resistência, os mesmos movimentos, os mesmos hiatos temporais, a mesma circularidade que se transforma em curva elíptica desvelando uma outra busca aparentemente externa, a da ausência. Esta é uma pista incontrolável que nos adverte para a aparição do medo frente à diluição dos mecanismos da compreensão e da percepção. O som mais distante que podemos ouvir alerta-nos para a distância a que está o mundo e quão longínqua pode estar a nossa consciência deste. Esta obra é uma advertência à imediatez, às diversas figurações que nos iludem sobre a nossa consciência do tempo, e também ao protagonismo veloz que encarnamos como uma potência maior do agir, falseando a nossa capacidade para captar o detalhe, distinguir uma sonoridade ínfima ou decifrar quais as camadas que usamos para construir o silêncio.

João Silvério
Junho 2008

i) Andrei Tarkovski, Andrey Rublyov, URSS, 1969.


 


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