JULIÃO SARMENTO
10 ABRIL 2012

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FICHA TÉCNICA
AUTO-RETRATO


 


O outro como auto-retrato.

“We are in a memory chamber”1 . Esta breve frase, que pertence a James Lingwood, coloca-nos no ponto de fuga que permite observar o trabalho de Julião Sarmento em perspectiva. Ou seja, ter um olhar sobre uma prática artística diversificada e prolífica no modo como procura e escolhe os meios (as estratégias) e as referências que usa e desenvolve nas suas obras, produzindo sucessivamente um vocabulário mais complexo, e acentuadamente mais contraditório, que nos desafia sistematicamente a memória visual e íntima.
O projecto que o artista preparou para esta edição do EMPTY CUBE, "Auto-retrato /  Self Portrait", é uma obra que explora essa complexidade, no sentido em que activa procedimentos e protocolos que nos propõem uma reavaliação do estatuto da imagem da obra de arte no seu correlato histórico até à actualidade.
Julião Sarmento escolheu uma obra de arte representativa e simbólica da colecção de pintura da mais importante instituição museológica e de referência do estado português, o Museu Nacional de Arte Antiga, para ser exposta por um breve período de tempo num espaço e num projecto caracterizados pelo efémero. Esta acção recontextualiza, numa primeira leitura, o museu e as práticas museológicas das entidades intervenientes segundo convenções estabelecidas que alicerçam a sua vocação patrimonial. Todos os procedimentos exigidos foram observados – o seguro prego a prego contratado com uma empresa internacional especializada em seguros para obras de arte, bem como o transporte especializado – como é boa prática num empréstimo temporário de uma obra de arte para uma exposição, cumprindo as prescrições e as condições exigidas.
A obra escolhida, “Retrato de Lucas Vosterman, o Velho” uma pintura a óleo sobre tela de Anton Van Dyck (c. 1630), é o retrato de um homem intimamente ligado ao ofício das artes, um artista (gravador) e amigo do pintor. A imagem revela-nos um rosto firme que dirige o olhar na nossa direcção e intersecta o nosso espaço, confrontando-nos.
A prática da pintura tem sido uma actividade permanente na obra de Sarmento, que se desenvolve a par de outras técnicas e meios de expressão. Contudo, a presença do rosto está vincadamente ligada à sua produção fotográfica e videográfica e raramente aparece na pintura com a intencionalidade de retratar uma determinada pessoa. Os rostos que emergem na pintura são quase irreconhecíveis e estão ligados ao corpo de uma forma carnal, ou são indícios num corpo que ergue o pescoço como um membro mudo, em que o rosto ausente é a metamorfose do imaginário.
A presença deste retrato, isolado no interior do espaço cúbico instalado dentro da galeria, amplia a potência da imagem e convoca o retrato como metáfora da presença do outro como seu duplo. No sentido em que esse outro é determinado pelo retrato como um género da pintura e pela apropriação como procedimento que exerce sobre o espectador, nos breves momentos que lhe são destinados, a possibilidade de conhecer o autor retratado numa linhagem histórica de actos e determinações de artistas.

João Silvério
Abril 2012

1 Esta frase inicia o texto que James Lingwood escreveu para o catálogo da exposição de Julião Sarmento realizada no Palácio de Velásquez pelo Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em 1999, em Madrid.