O outro como auto-retrato.
  “We are in a memory chamber”1 . Esta breve frase, que pertence a James Lingwood,  coloca-nos no ponto de fuga que permite observar o trabalho de Julião Sarmento  em perspectiva. Ou seja, ter um olhar sobre uma prática artística diversificada  e prolífica no modo como procura e escolhe os meios (as estratégias) e as  referências que usa e desenvolve nas suas obras, produzindo sucessivamente um  vocabulário mais complexo, e acentuadamente mais contraditório, que nos desafia  sistematicamente a memória visual e íntima.
  O projecto que o artista preparou para esta edição  do EMPTY CUBE, "Auto-retrato /  Self Portrait", é uma obra que explora essa complexidade, no  sentido em que activa procedimentos e protocolos que nos propõem uma  reavaliação do estatuto da imagem da obra de arte no seu correlato histórico  até à actualidade. 
    Julião Sarmento escolheu uma obra de arte  representativa e simbólica da colecção de pintura da mais importante  instituição museológica e de referência do estado português, o Museu Nacional  de Arte Antiga, para ser exposta por um breve período de tempo num espaço e num  projecto caracterizados pelo efémero. Esta acção recontextualiza, numa primeira  leitura, o museu e as práticas museológicas das entidades intervenientes segundo  convenções estabelecidas que alicerçam a sua vocação patrimonial. Todos os  procedimentos exigidos foram observados – o seguro prego a prego contratado com  uma empresa internacional especializada em seguros para obras de arte, bem como  o transporte especializado – como é boa prática num empréstimo temporário de  uma obra de arte para uma exposição, cumprindo as prescrições e as condições  exigidas. 
    A obra escolhida, “Retrato de Lucas Vosterman, o Velho” uma pintura a óleo sobre tela de Anton Van Dyck  (c. 1630), é o retrato de um homem intimamente ligado ao ofício das artes, um  artista (gravador) e amigo do pintor. A imagem revela-nos um rosto firme que  dirige o olhar na nossa direcção e intersecta o nosso espaço, confrontando-nos. 
    A prática da pintura  tem sido uma actividade permanente na obra de Sarmento, que se desenvolve a par  de outras técnicas e meios de expressão. Contudo, a presença do rosto está  vincadamente ligada à sua produção fotográfica e videográfica e raramente  aparece na pintura com a intencionalidade de retratar uma determinada pessoa.  Os rostos que emergem na pintura são quase irreconhecíveis e estão ligados ao  corpo de uma forma carnal, ou são indícios num corpo que ergue o pescoço como  um membro mudo, em que o rosto ausente é a metamorfose do imaginário. 
    A presença deste retrato, isolado no interior do  espaço cúbico instalado dentro da galeria, amplia a potência da imagem e  convoca o retrato como metáfora da presença do outro como seu duplo. No sentido  em que esse outro é determinado pelo retrato como um género da pintura e pela  apropriação como procedimento que exerce sobre o espectador, nos breves  momentos que lhe são destinados, a possibilidade de conhecer o autor retratado  numa linhagem histórica de actos e determinações de artistas. 
  João Silvério
    Abril  2012  
  
    
        1 Esta frase  inicia o texto que James Lingwood escreveu para o catálogo da exposição de  Julião Sarmento realizada no Palácio de Velásquez pelo Museo Nacional Centro de  Arte Reina Sofia, em 1999, em Madrid.