Notícias de Xangai.
        Este projecto que Ana Pérez-Quiroga apresenta no  EMPTY CUBE encerra uma memória epistolar inscrita nos contactos que mantivemos  durante a sua estadia em Xangai, em 2008. Foi sempre com uma enorme expectativa  que recebi as suas notícias e as imagens transportadas por essa tecnologia  comum, mas ainda assim mágica, que é a internet. Embora estas recordações que  vos transmito sejam pessoais e apenas aqui figurem como um apontamento,  sinalizam um desdobramento no trabalho da autora, que sempre incorporou  memórias e evocações patentes em registos e escritos. Essas memórias são de  diversos tipos, como os objectos que recolhe ou furta, pequenas histórias  anotadas, que por vezes conta e mais tarde são integradas na sua produção,  bilhetes, recibos e tudo o que estiver ao alcance. A sua relação com o mundo  implica uma atitude imersiva e cúmplice com a vida quotidiana do lugar onde se  encontra, seja em trânsito ou em permanência. A utilização da referência ou da  evocação determina o seu grau de interesse por situações ou momentos que  transporta para a sua obra, impregnada por uma forte componente  auto-referencial e poética. E suspeitamos que Rimbaud paira sob a sua  personagem, o seu ser-um-outro enquanto artista, em permanente deambulação  etnográfica. 
          O desdobramento de que falo atrás apresenta-nos,  neste projecto, uma outra face do trabalho de Pérez-Quiroga, que reúne com uma  sagaz eficácia três instrumentos centrais no seu trabalho.  A linguagem, a sua prática recolectora e o  registo. Este último tem constituído um diário improvável, que a artista vai  escrevendo com uma irregularidade permanente. É neste contexto que “O quase  golpe da bicicleta” nos transporta para o domínio de uma possível ficção, no  sentido em que a história pessoal, vivida pela artista, é representada através  de um conjunto de imagens, um texto datado de um possível diário, um texto de  parede e três objectos. As imagens assemelham-se a uma sequência  cinematográfica que nos situa numa cidade oriental, Xangai, e são registadas  pela câmara do seu iPhone. O uso deste aparelho é revelador da mobilidade que a  artista desenvolve no seu trabalho de campo, transformando-o num dispositivo  que articula a experiência exacerbada da grande metrópole com a necessidade  voraz de captar e comunicar uma sucessão de momentos imprevistos. 
          Voltemos de novo atrás. A linguagem é a primeira  ferramenta que Ana Pérez-Quiroga utiliza, sob uma ironia fina e despojada,  construindo uma arquitectura disruptiva perante o aparente registo da  experiência descrita no texto. A palavra “quase” pertencente ao título,  subverte e previne-nos sobre o desfecho provável da narrativa, deslocando-nos  para o centro da acção da artista que ultrapassa o mero relato de um  acontecimento. Tal como a página do diário, pertencente a um momento da sua  vivência, é de facto a única página escrita desse diário imaginado. Da mesma  forma, as fotografias digitais (provas únicas) são impressas  sobre  papel de gramagem elevada (Papel Fabriano de 230 gr.), tradicionalmente usado  para a prática do desenho ou da aguarela, constituindo-se como metáfora e  apropriação de técnicas e meios conhecidos na história da representação. A  artista usa uma estratégia operativa para trabalhar as suas vivências pessoais  no espaço público e tece sobre a sua experiência quotidiana uma teia de  relações entre a intimidade, o desejo e a experiência do outro como objecto e  matéria do seu trabalho. Seja ainda através da revisitação de um objecto,  accionada pela memória que este evoca, ou pela construção ficcional disseminada  pelas imagens e pelo fio íntimo e textual do que poderia ser um improvável  diário. 
        João Silvério
          Janeiro 2009