Entre  a elegância da faktura e a energia do  evento
        A exposição é um dispositivo  fundamental da arte do século XX.
          Podemos mesmo dizer um pouco mais  afirmativamente: o século XX criou um novo dispositivo para a arte que é a  exposição, com os seus sistemas de procedimento, os seus protocolos, as suas  práticas e os seus espaços.
         O surgimento da exposição enquanto  dispositivo não deixou incólume a criação artística. Bem pelo contrário, os  artistas começaram a produzir obras para situações expositivas específicas e de  dois modos: ou como intervenções num espaço definido que se torna no próprio  assunto da intervenção, ou como concepção da questão expositiva enquanto  narrativa central do artístico da  arte.
          Esta mudança é cronologicamente  acompanhada de perto por uma outra, o surgimento do museu de arte moderna e  contemporânea como uma instituição que redefine, estrutura, disciplina e produz  discurso sobre a linguagem expositiva a partir de uma estrutura de pensamento  colhida à História de Arte – primeiro – depois à construção de uma  fenomenologia da experiência espacial e finalmente como uma situação que quebra  com a relação espectador/obra, subjectum/objectum,  para tentar definir uma outra que prescinde da categoria do “perante” e, a  partir desta mecânica, tenta demitir a relação tradicional da estética do  gosto, do desinteresse e da distância, uma das aporias fundamentais do moderno.  Este desenvolvimento propõe uma lógica de hipermodernidade, mais do que uma  ruptura com a modernidade histórica, embora sobre ela pese (quer no discurso  teórico, quer no jargão artístico) uma herança da interpretação centrada sobre  o formalismo e a grande narratividade histórica, ambas manifestamente  insuficientes para cobrir a complexidade do espectro do fenómeno moderno e  mesmo da sua versão meta-discursiva (o modernismo) ou até o seu momento  maneirista (a vanguarda). 
        O museu, como a galeria de  exposições, é uma invenção da mudança de regime politico oriunda da Revolução  Francesa, mas o museu de arte moderna e contemporânea é uma criação alemã (e  posteriormente americana) da segunda década do século XX. O museu como  instituição que mostra o que lhe é contemporâneo possui os seus protagonistas  no Landesmuseum de Hanôver, dirigido por Alexander Dorner, como depois no MoMA  de Alfred H. Barr, devidamente coadjuvado por Phillip Johnson. Terá sido na  viagem de ambos à Alemanha e à Rússia, em 1926, que se define a tipologia  museológica, curatorial, científica e arquitectónica que produz a desobstrução  do espaço expositivo, a construção de uma narratividade espacial e a ideia de  instalação que configuram o museu de arte moderna.
         A estrutura expositiva do MoMA  reflecte a reflexão de Barr e Johnson sobre a depuração do espaço expositivo, a  necessária neutralidade da parede e a lógica didáctica e comparativa do  processo expositivo que são o corolário dos diagramas históricos em “foguetão”,  herdeiros de um pensamento genealógico, que Barr definiu e que corresponderiam  ao pensamento claramente orientado por princípios de depuração genética de Johnson  (que o fizeram ser um fervoroso simpatizante nazi nas duas décadas seguintes,  embora com uma abertura estética que não se coadunava com a ruralidade do  nacional-socialismo alemão). 
         Uma das experiências mais  significativas com que Barr e Johnson tiveram contacto na Alemanha foi a da  transformação do Landesmuseum por Alexander Dorner, que teria o seu corolário  na proposta que lançou a Lazar Lissitzky (primeiro) e a Moholy-Nagy (depois)  para desenharem dois gabinetes: o primeiro para a arte abstracta e o segundo  para a arte cinética.
          O Kabinet für Abstrakte Kunst, concebido por Lissitzky e aberto ao  público em 1927, consistia de um espaço no qual a percepção derivava da  deslocação do espectador, sendo uma das primeiras experiências de construção de  um espaço de fruição artística devotada à inversão da relação contemplativa.
          De facto, o convite a Lissitzky  deve-se ao espaço Proun, que o  artista russo tinha desenvolvido desde 1919 (encontrando-se o primeiro desenho Proun em Portugal, na colecção Berardo),  o qual foi apresentado ao público em 1923 na Grosse Berliner Kunstaustellung e  agora se encontra reconstruído no Vanabbe Museum de Eindhoven, na Holanda (a  reconstrução foi efectuada pelo seu director em 1964 a partir de uma  litografia, Kestnermappe nº 6, de 1923).
         Tanto o espaço Proun – que consiste numa tridimensionalização das questões  suscitadas por Malevich a partir de 1915 –, como o Kabinet são exemplos de uma conversão da exposição em suporte  artístico, ou mesmo da conversão do espaço expositivo em obra em si mesmo.
          Quer isto dizer que o espaço no  qual a exposição se desenvolve deixou de ser, a partir de Lissitzky (e  poderíamos acrescentar uma linhagem transversal na arte do século XX que passa  por Kurt Schwitters, Edward Kienholz, Allan Kaprow, Robert Rauschenberg, Yves  Klein, Lucio Fontana, Robert Morris e Barry Leva até Gregor Schneider), um dado  da criação artística para se transformar no transcendental da arte.
         Por outras palavras, a condição de  possibilidade da presença da obra de arte converteu-se numa determinação  fenomenológica do espaço expositivo, para além de uma condição de viabilidade  ontológica da própria situação pública da obra de arte. Poderíamos dizer ainda,  de uma forma mais radical: o espaço expositivo substituiu, na hipermodernidade,  a noção de moldura, ou de limite externo da obra, para permitir a extensão  desta até ao limite da condição expositiva, sabendo que esta última se pode  expandir até ao campo amplo (alargado) do território – numa versão  tridimensional do cinema, mais do que uma alteridade da arquitectura.
        Assim, a opção de retorno a um  espaço delimitado no interior do espaço expositivo corresponde a uma  possibilidade de restaurar, de forma arqueológica, uma condição expositiva  circunscrita como um ensaio – no sentido kirkegaardiano –, uma repetição de uma  situação que denota um modo-de-usar. Esta acepção de modalidade presente no  projecto do Empty Cube insere-se numa  tentativa de repensar a performatividade de um espaço, cuja existência é  intimamente dependente de uma efemeridade que reforça o seu carácter de evento.
          Estas duas condições – a  construção, como num cabinet d’amateur,  de um espaço dentro de um espaço (com todas as referências que suscita a  Perec), fazendo com que o projecto seja separado do contacto com a galeria e a  efemeridade da situação – transformam o problema expositivo numa questão  performativa.
          Por outras palavras: o  desenvolvimento de uma estrutura que foi pensada, concebida e desenvolvida para  poder ser instalada e removida num (muito) curto lapso de tempo implica uma  tónica na performatividade do próprio espaço expositivo já que é o seu  desempenho enquanto transcendental do processo artístico que é testado. Por  outro lado, converte-se numa máquina de constituição de relações, de partilha,  a propósito da sua condição de evento.
         É nesse sentido que a sua condição  de micro-acontecimento convoca um conjunto de protocolos sociais e colectivos  em torno da revelação fugaz do desenvolvimento de um espaço físico, da sua  potencialidade como campo de possibilidades de intervenção, mas também de  reequacionamento da questão do lugar sob o signo do “como se” (como se o espaço  fosse real, como se fosse perene, como se fosse a reedição dos seus modelos  históricos, etc.).
        É por isso que o projecto do Empty Cube consiste num dos mais  ambiciosos, claros, sintéticos e focados projectos artísticos que conheço.  Porque na ficção temporária de comunidade de partilha que define possui a  elegância construtiva da sua faktura precisa e a capacidade performativa do evento.
        
        Delfim Sardo